sexta-feira, 27 de junho de 2014

Copa, vazão de esgotos e fluxo de bytes

Não sou homem de muitos vícios. O mais condenável deles, fumar, que cultivei desde a adolescência, foi abandonado há vinte anos. Sobraram poucos. Inocentes e inofensivos, como convém a um septuagenário. Um deles é ver noticiários na televisão.
Vejo noticiários avidamente, como avidamente qualquer pessoa se entrega a seu vício. À noite, assisto vários ao mesmo tempo, pulando de um para outro nos intervalos comerciais, indo e voltando, comparando os distintos enfoques que as diferentes emissoras dão ás mesmas notícias, juntando partes, pegando um detalhe aqui, outro ali.
Por que? Ora, porque é vício. Não adianta perguntar a um viciado as razões que o levam ao vício.
Ultimamente, entretanto, meu vício tem sofrido um sério abalo. Veja lá: a situação no Oriente Médio está particularmente tensa, a Síria em chamas, a Ucrânia se despedaçando, enfim, os tempos andam turbulentos. E quando ligo a TV nos noticiários, tomo conhecimento de que o tendão do Sr. Cristiano Ronaldo inflamou, que o joelho do Sr. Neymar Jr. já não dói, que a unha do dedão do pé esquerdo de fulano ou beltrano encravou e outros fatos de mesmo quilate.
Quer dizer: para um viciado em noticiários como eu, há duas semanas o mundo acabou. Ou, pelo menos, foi encoberto por uma densa neblina que tudo filtra e só deixa passar imagens, sons e fatos relativos à Copa do Mundo. E algo só é considerado “notícia” ou digno de ser mencionado em um veículo de comunicação se tiver a ver com a Copa.
E, como disse sabiamente nossa atual Ministra da Cultura Marta Suplicy, diante do inevitável só nos resta relaxar e gozar, rendamo-nos às evidências e voltemos nossas atenções para a Copa. Mas de uma forma original e, sobretudo, com um mínimo de decência, evitando temas palpitantes como o latejar do joelho do Sr. Messi.
Em vez disso, vou ilustrar o assunto contando uma historinha absolutamente verdadeira mas que pouca gente conhece.
Eu comecei a trabalhar, ainda estudante universitário, na segunda metade dos anos 50 do século passado. Estava, então, cursando engenharia e trabalhava em um centro de excelência tecnológica onde se realizavam pesquisas sobre esgotos sanitários. E por favor contenha o riso: por mais estranho que lhe pareça, é um campo de estudos interessantíssimo, tão nobre e de importância tão grande para a saúde pública como, por exemplo, o desenvolvimento de vacinas.
Uma das pesquisas que estavam em desenvolvimento, encabeçada pelo Engenheiro Eugênio Macedo – uma das pessoas mais cultas, inteligentes e interessantes que conheci e de quem até hoje me orgulho de ter sido amigo – buscava determinar a vazão de esgotos sanitários que a população de determinadas regiões do Rio de Janeiro despejava diariamente na rede pública, parâmetro essencial para que novas redes fossem projetadas. E a única maneira de fazer isto era, naturalmente, medir.
Talvez meu preclaro leitor não saiba, mas o Rio de Janeiro foi a quinta cidade do mundo a dispor de uma rede pública de esgotos e a terceira a ser dotada de uma estação de tratamento, situada no Bairro da Glória, no prédio hoje ocupado pela SEARJ, a vetusta Sociedade de Engenheiros e Arquitetos do RJ. Que não apenas preservou a edificação original como também parte de sua maquinaria – veja, na Figura 2, obtida no acervo da SEAERJ, a sala de bombas, onde se encontram em perfeito estado de conservação duas bombas com mais de século e meio de existência, acionadas a vapor, utilizadas para encaminhar os esgotos ao tratamento.
GPC20140626_1Figura 1: Sala de bombas da antiga ETE Glória
Portanto, nos anos 50 do século passado era fácil encontrar áreas servidas por redes de esgotos atendendo populações com diferentes características. Algumas delas foram selecionadas para instalar pontos de medição de vazão cujos dados foram registrados durante mais de um ano, já que a contribuição de esgotos varia sazonalmente e é função de diversos fatores como poder aquisitivo da população, disponibilidade de água, distância entre o local de moradia e o de trabalho, dia da semana e coisas que tais. O resultado foi a produção de, literalmente, centenas de metros (sem exagero) de registros gráficos da variação do nível do esgoto em dezenas de diferentes pontos de medição.
Mas não era a variação de nível que interessava. O que se queria saber era a variação da vazão, ou seja, do volume de água que atravessava cada medidor ao longo do tempo. Havia, portanto, que examinar todos aqueles rolos de papel, convertendo cada nível d’água em vazão. E o serviço chato sobra, naturalmente, para o estudante. Por isso uma das minhas primeiras tarefas profissionais foi a “reconstituição de vazões”, nome pomposo que se dava ao trabalho de medir a ordenada de cada ponto no gráfico, calcular a altura correspondente do nível d’água e convertê-la em vazão.
Ô servicinho chato…
Mas foi assim que mergulhei no esgoto (metaforicamente falando) e comecei a aprender coisas interessantes. Por exemplo: que se consumia mais água (e, por conseguinte, se gerava mais esgoto) nas regiões mais próximas da praia que nas mais distantes, nos bairros mais ricos que nos mais pobres, que a produção de esgotos começava a aumentar pela manhã três ou quatro horas mais cedo nos subúrbios distantes que nas regiões mais próximas do centro e coisas assim. E aprendi a conhecer melhor a cidade onde vivo desde a adolescência e pela qual até hoje cultivo um amor irrestrito apesar dos garotinhos e garotinhas terem quase acabado com ela.
Mas, voltando ao que interessa: comparado com os equipamentos de medição de vazões atualmente disponíveis, o nosso era quase tosco. E era relativamente comum que um ou outro medidor apresentasse problema. Às vezes dois, simultaneamente, mas era raro. Mas que todos apresentassem a mesma irregularidade simultaneamente era praticamente impossível.
Pois um dia, aparentemente, isto ocorreu. Na mesma data, na mesma hora, no final de uma manhã de domingo, todos os dispositivos de medição registraram uma vazão de esgotos irrisória, quase nula, por um período de cerca de duas horas, exceto por um pequeno pico mais ou menos no meio do período. Era como se todo o Rio de Janeiro se abstivesse de gerar esgotos simultaneamente.
Que diabo era aquilo? Defeito? A probabilidade do mesmo defeito ocorrer ao mesmo tempo em todos os pontos de medição era desprezível. Sabotagem? Deus meu, quem haveria de se dispor a sabotar uma pesquisa de campo sobre geração de esgotos?
O fenômeno parecia inexplicável, mas alguma explicação haveria de ter. Então a equipe técnica se dispôs a investigar.
Em que data isto ocorreu? No ano de 1958, mês de junho, dia 29. E que diabos teria ocorrido naquele domingo especial às onze da manhã, horário do Rio?
No Brasil, nada. De fato, garanto que absolutamente nada ocorreu. Mas na Suécia, mais particularmente em Estocolmo, às três da tarde, horário local (correspondente às onze da manhã no Rio de Janeiro), o Brasil disputou a final da Copa do Mundo com os donos da casa.
E ganhou.
Note que naqueles tempos não havia transmissão direta pela televisão. Ouvia-se os jogos com o ouvido colado ao rádio e a respiração suspensa. E ainda assim o Brasil parou. E parou tanto que ninguém sequer foi ao banheiro (exceto no intervalo do jogo, naturalmente, o que explica aquele estranho pico de vazão de esgotos perto do meio dia).
Quer dizer: não é de hoje que a Copa do Mundo oblitera as demais notícias.
Mas, pergunto eu, por que escrever uma coluna sobre este tema justamente hoje? E já ouço os leitores responderem em coro: “Ora, por causa da Copa, naturalmente”.
Mas aqui, neste espaço dedicado à tecnologia? A razão não poderia ser apenas esta. É preciso mais.
Reflitam sobre a historinha (ou “causo”, como diria meu dileto amigo Flávio Xandó) que acabei de contar. Ela relata uma forma inesperada e insuspeitada de aferir o interesse do público por um jogo da Copa: medindo a produção de esgotos.
Mas com a evolução tecnológica surgiram outros. Que me permitem afirmar, por exemplo, que até domingo passado, 22/06, o jogo da Copa de 2014 que gerou maior interesse e atraiu mais espectadores em todo o mundo foi Brasil x México, realizado em 17/06. E o que interessou ao menor número de espectadores foi o jogo Nigéria x Bosnia Herzegovina, em 21/06.
E como eu sei disso?
Bem, por estranho que pareça, através de um método análogo ao que usei em 1958 para verificar o interesse sobre a final da Copa de 58: medição de fluxo.
A diferença é que há pouco mais de meio século o interesse foi aferido a partir da medição do fluxo de esgotos, enquanto agora foi usada a medição do fluxo de bytes.
Explico: a Akamai, sobre a qual eu já escrevi aqui e alhures, é uma empresa cujos servidores são atravessados por um terço de todo o tráfego da Internet. Inclusive, naturalmente, por aquele gerado pela transmissão em tempo real dos jogos da Copa via Internet. E ela decidiu medir o fluxo de bytes gerado pelos espectadores de cada um dos jogos realizados (no momento em que digito estas mal traçadas, os jogos estavam atualizados até o último domingo, 22)
Estes gráficos e outros dados sobre os fluxos de bytes gerados pelas diversas partidas, estão na  página dedicada à Copa do Mundo do sítio da Akamai.
Uma visita a ela leva a constatações interessantes.
GPC20140626_2Figura 2: gráfico interativo
Reparem na Figura 2, lá obtida. Ela mostra um gráfico interativo do fluxo de bytes ao longo do tempo, desde 12/06 até 26/06. Um clique na caixa situada no alto e à esquerda, onde se lê “Global”, abre um menu de cortina que permite selecionar o fluxo dirigido às diversas regiões do planeta (América do Norte, do Sul, Europa, Ásia, África, Austrália e Global – este último o do gráfico exibido na figura, que engloba todas as regiões). Cada um dos pequenos círculos brancos com um ponto negro no centro representa uma partida (ou duas, se realizadas no mesmo horário) e, movendo-se o ponteiro do mouse para sobre um deles aparece uma janela com os dados da partida (data, hora GMT e fluxo de dados gerado por ela; curiosamente, o resultado não foi considerado suficientemente importante para constar aqui). Arrastando-se com o mouse as duas marcas na extremidade da barra que aparece abaixo do gráfico, o período mostrado no gráfico é reduzido, permitindo aumentar o nível de detalhes.
Além disso, acima do gráfico aparecem, dia a dia, as partidas realizadas e seu fluxo de dados (novamente sem o resultado; para a Akamai parece que os resultados das partidas não têm a menor importância, o que importa é o fluxo de dados…)
Pois bem: foi lá que eu descobri que entre as partidas realizadas até o último domingo, o jogo Brasil x México foi o que despertou maior interesse, provocando um fluxo de 4,59 TB/s (TeraBytes por segundo), mais de três vezes superior ao fluxo de 1,3 TB/s gerado por  Nigéria x Bosnia Herzegovina, o que havia despertado menor interesse até então. E que o jogo Inglaterra x Itália, ambas eliminadas na primeira fase, chegou a atrair um fluxo de 3,14 TB/s.
Sugiro uma visita à página citada. Para quem gosta de estatísticas, é um prato cheio. E para quem gosta de Copa, transbordante.
Vão até lá e divirtam-se.
B.Piropo
via Tech Tudo.
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