sábado, 8 de março de 2014

Como se conta uma boa história num vídeo game

E porque tão poucos o conseguem fazer.


Quem não gosta de uma boa história? Mesmo quem joga para andar aos tiros ou aos pontapés a uma bola aprecia uma de vez em quando. Infelizmente, videojogos não são o primeiro meio que vem à cabeça da maioria das pessoas quando se fala em boas histórias. Bem pelo contrário. São muitos os que torcem o nariz a jogos com narrativa e essa fama de maus contadores de histórias é totalmente merecida. É preciso esforçar-nos um pouco para enumerar os jogos cuja história nos marcou tanto quanto um livro, filme ou série de televisão. É provável que não precisemos dos dedos das duas mãos para os contar.
Não se assustem; o problema não são os nossos padrões demasiado elevados. A realidade é que a maioria dos designers acredita que este não é um meio ideal para se contar uma boa história. Financeiramente, é um risco lançar um jogo com história excelente mas jogabilidade mediana(como Spec Ops: The Line ou Beyond Good & Evil) mas o inverso é quase sempre um sucesso comercial(como Gears of War ou Mario).
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Spec Ops: The Line é um jogo sobre stress pós traumático que mereceu a atenção dos críticos mas não a dos jogadores.
São raros os casos de jogos em que tanto jogabilidade quanto história são aplaudidos. A maioria dos estúdios ainda não domina a arte de contar uma boa história.
Porque é que é tão difícil contar uma história num video jogo?
O elemento que separa os videojogos dos outros meios é a interactividade. Ao contrário dos livros, filmes, teatro ou televisão, o jogador tem um papel activo na história, isto é, não é um mero espectador do que está a acontecer(**coloquem aqui a vossa piada sobre Metal Gear Solid**). A interactividade é aquilo que nos faz jogar mas é também o principal causador de tanta má história que aflige o meio que tanto gostamos. Isto acontece porque muitos bom designer por esse mundo fora ainda não largou algumas das convenções que funcionavam há mais de 20 anos atrás mas que hoje estão ultrapassadas.
Blocos de texto a explicar o que se passa eram ótimos...quando o motor de jogo não conseguia reproduzir o que estava no papel. Interromper a experiência de jogo para colocar os jogadores a ver uma cinemática era tolerável...quando a diferença entre os gráficos do jogo e o CGI eram tão grandes que nos deixavam mesmerizados. Depois há aquele recurso que mais espécie me faz: quick time events DURANTE uma cinemática. É como quem obriga o jogador a relaxar...mas não muito! Como quem diz, "Ai pousaste o comando? Então toma lá um botão para carregar senão é game Over".
Separadores entre cenas de um filme e narradores de trailers também tiveram o seu tempo mas o cinema já ultrapassou isso. Será que os videojogos não conseguem fazer o mesmo com ferramentas que eram necessárias em 1996 mas que fazem muito pouco sentido em 2014?
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Em Resident Evil 6, subir escadas ou descer por uma corda é uma QTE. As tradicionais direcções já não são suficientes.
Uma boa forma de medirmos o peso que a narrativa tem num jogo é vermos se os produtores aproveitaram as próprias mecânicas do jogo para contar a história. Se isso acontecer, podem ter a certeza que a história foi pensada antes ou em conjunto com o resto do jogo e não se resume a uma reles cola para juntar, à pressão, o que já estava feito(**cough**Final Fantasy XIII-2**cough**).
Um grande exemplo de mecânica aliada à narrativa é a lanterna em Alan Wake. Além de nos permitir ver no escuro, como qualquer boa lanterna, serve também de arma contra os inimigos do jogo e de pressão psicológica para o jogador: nunca conseguem fazer com que a luz revele por completo o que se passa no ecrã e, se deixarem as pilhas acabar, estão metidos num grande sarilho. Inteligente, não? Alan Wake leva também mais um ponto por narrar a história do jogo à medida que progredimos, sem interromper a jogabilidade. É uma pena continuar a sofrer de uma ou outra cinemática aqui e ali mas, se bem me recordo, aconteciam apenas como introdução e fecho de cada episódio e não tinham QTEs.
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Em Alan Wake, a lanterna é o nosso maior aliado e inimigo.
Outro bom exemplo é o famoso nevoeiro de Silent Hill. Começou por ser uma ferramenta que servia para esconder as limitações técnicas do jogo mas acabou por ser uma mecânica chave essencial para a narrativa da série. Tal como a lanterna de Alan Wake, serve também de pressão psicológica, impedindo o jogador de ver os perigos que sabe que estão lá, à sua espera.
Existem casos especiais em que a história surge antes do próprio jogo, como Heavy Rain, The Walking Dead, The Wolf Among Us ou velhas aventuras gráficas. Por norma, são melhor escritos e mais coesos que o normal mas, em contrapartida, têm mecânicas de jogo muito simples. Os QTEs também abundam por estas bandas mas são a base da jogabilidade e não um mero acessório.
Contar uma boa história através de mecânicas é o sonho de qualquer designer mas a realidade é que muito poucos conseguem lá chegar. Muitas vezes, as mecânicas contradizem a história sem que se possa fazer muita coisa sobre isso. Basta pensarmos no caso de Grand Theft Auto onde o jogador, se assim quiser, pode ser o maior serial-killer do planeta. Dificilmente a história do jogo se vai adaptar a isso.
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Em Tomb Raider, a “frágil” Lara Croft tem respeito pela vida humana nas cutscenes mas torna-se uma assassina em série assim que o jogador assume o controlo.

Quando não conseguem chegar ao ponto sublime de utilizar mecânicas para enriquecer a narrativa, os jogos devem, pelo menos, respeitar a regra de ouro de qualquer história: "show, don't tell".
"Show; Don't tell"
"Show, don't tell"("mostra, não contes", em português) é a regra de ouro para qualquer boa história, seja em que meio for. Nenhum escritor que se preze diz "Ana estava nervosa" quando pode dizer “Ana não parava de roer as unhas”, deixando a parte do nervosismo à imaginação do leitor e sem insultar o seu intelecto. Trata-se de envolver o receptor numa história, não de preencher uma folha do IRS com tudo explícito.
Com o passar dos anos assistimos ao culminar desta tendência de excelente design que se iniciou em 2003 com Metroid Prime e se refinou no ano seguinte com Half-Life 2. Não quero dizer que jogos com boa história não existissem antes (já lá vamos) mas foi com o jogo da Valve que começou aquela que considero ser a forma ideal de se contar uma história num videojogo: sem cinemáticas, sem nunca perdermos o controlo do personagem, com a narrativa a ser exposta através de acontecimentos no mundo ou encontros com NPCs e com a backstory a ser aludida ou revelada pelo próprio ambiente.
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A narrativa nunca interrompe a jogabilidade e a jogabilidade nunca impede o desvelar da narrativa. É um balanço perfeito.
Os jogos mais aplaudidos pela crítica têm seguido estas pisadas. Rapture e Columbia, de Bioshock e Bioshock Infinite, são mundos riquíssimos que são revelados de forma natural, sem interromper a experiência de jogo. O meu "mundo" favorito desta geração é a Wasteland de Fallout 3, completamente revelado através de elementos do próprio jogo como NPCs, cidades, coleccionáveis, etc.. Não são precisos longos textos ou constantes vídeos a narrar o que se passa. Tudo flui naturalmente, como na vida real, criando um ambiente tão bom que, por momentos, nos faz esquecer o mundo real.
Mesmo os jogos com escrita mínima conseguem ter um mundo riquíssimo com a narrativa a desenrolar-se apenas através do seu ambiente. Quem já jogou Dark Souls sabe bem do que falo. O jogo não tem praticamente nada para ler, ver ou ouvir; é jogar para a frente e, de vez em quando, encontrar um NPC que nos diz meia dúzia de coisas(se não nos quiser matar). Apesar do minimalismo, o mundo e história de Dark Souls são riquíssimos e cheios de pequenos pormenores. O mesmo serve para Ico e Shadow of the Colossus.
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O lore de Dark Souls é desvendado aos poucos e de forma brilhante. Não são precisos grandes blocos de texto para envolver o jogador.
Exemplos extremos de "show, don't tell" são Brothers: A Tale of Two Sons e Journey, dois jogos que contam uma boa história sem que exista sequer uma única palavra para o jogador ler! É só jogar e ir desvendando o que os seus mundos nos reservam.
Recomendações
No meu último artigo falei de alguns dos jogos pior escritos que já joguei (Final Fantasy XIII e XIII-2, exemplos perfeitos de "tell, never show" com as suas data logs essenciais à história) por isso acho por bem recomendar hoje histórias de qualidade, além das que já mencionei. Muitos destes jogos não se enquadram nas linhas que há pouco mencionei mas há uma boa razão para isso: são de tempos idos e obedecem às regras de design da altura. Cá vai a lista:
Tudo do Tim Schafer: O melhor contador de histórias da indústria e um designer genial. Recomendo especialmente Monkey Island 1 e 2, Full Throttle, Grim Fandango (o meu favorito dele), Psychonauts, Brutal Legend e Costume Quest.
Conker's Bad Fur Day: Além do Tim Schafer, existe muito pouca gente nesta indústria com talento suficiente para escrever comédia. Conker's Bad Fur Day, para a Nintendo 64 e XBox, é uma risota do início ao fim.
Final Fantasy VI, VII e IX: São os títulos da série com as melhores histórias e personagens. Se conseguirem ultrapassar a barreira gráfica, têm aqui alguns dos melhores RPGs que poderão jogar.
Persona 4: O desenvolvimento de personagens deste jogo mete num bolso qualquer Final Fantasy saído nos últimos 15 anos. Muito bem escrito e cheio de carisma.
Uncharted 2: Tem personagens muito bem trabalhadas e sequências de acção jogáveis que teriam sido relagadas a cutscenes nas mãos de outro estúdio. Espero que o legado de Amy Hennig continue na Naughty Dog.
Metal Gear Solid 1 e 3: São as histórias mais “acessíveis” dentro de uma série que dá a volta ao miolo de qualquer um. Hideo Kojima é fortemente criticado pelas suas cinemáticas e acho que está na hora de ele próprio reconhecer que muitas vezes exagera.
Fahrenheit: Apesar de criticada pelos mais puristas, sou fã da forma como o David Cage conta as suas histórias. Se gostaram de Heavy Rain e Beyond: Two Souls, deem uma vista de olhos a Farenheit. Vale muito a pena.
L.A.Noire: Se gostam de narrativas à la C.S.I.(um caso por episódio), vão adorar este jogo. O grande arco da história não é nada de especial mas os diálogos e o voice acting são capazes de ser os melhores de sempre num videojogo.
Mass Effect: A história épica do/a Comandante Shepard é contada à medida de cada um. Quem quiser saber muito sobre este universo tem muito para descobrir; quem quiser apenas completar a história também o pode fazer sem nunca perder o fio à meada.
Fallout 3: Menciono-o novamente porque é, de facto, muito especial. Sempre que falo com alguém sobre Fallout 3, essa pessoa conta-me uma experiência completamente diferente da minha. Acho isso mágico e algo que só os videojogos podem proporcionar.
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Grim Fandango tem um dos melhores e mais simples universos que já vi num jogo. É altamente recomendado.
A narrativa parece estar a tornar-se uma prioridade na indústria e para quem, como eu, aprecia uma boa história, isso são ótimas notícias. Ainda há um caminho muito grande a percorrer mas acredito que este meio vai ser tão bom ou melhor que os outros para contar uma boa história. Quem sabe se, nos próximos anos, não vemos guionistas de videojogos a serem tão celebrados quanto os mais famosos autores ou realizadores de Hollywood.
Já agora, qual é o jogo com a vossa história favorita?
Fonte: http://www.eurogamer.pt/

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